quinta-feira, 3 de agosto de 2023

História de Veneza, de John Julius Norwich

 

History of Venice, de John Julius Norwich

A Cidade Única

Paulo Avelino

NORWICH, John Julius. A History of Venice. Londres, Reino Unido: Penguin Books, 2012. 673p.

Talvez a mais ilustre licitação de obra pública de toda a História aconteceu em Veneza no século XVI. Precisava-se construir uma nova ponte. No mesmo lugar havia uma ponte de madeira, que fora destruída por duas vezes, por uma revolta e outra vez por um motivo mais trágico ainda, pelo peso da multidão que se reunira para uma festa. Finalmente a Signoria (governo da cidade) decidiu resolver o problema de uma vez por todas e fazer uma ponte de pedra. Lançou a licitação. Arquitetos enviaram seus projetos. Todos os concorrentes constam na Wikipedia e na História: Sansovino, Vignola, Scamozzi e Palladio, todos célebres e com opulentos currículos de palácios e igrejas. Mas havia mais um arquiteto concorrente: um certo Michelangelo, autor de uma certa Pietá e de uma certa Capela Sistina.

Assim é Veneza. Uma República independente que durou do ano 421 (segundo a lenda) até 1797 quando Napoleão enviou soldados para conquistá-la. República em uma Europa coalhada de monarquias e República estável em uma Itália infestada por irrequietos condottieri (senhores da guerra). E hoje uma cidade desse novo país, a Itália - só que os ônibus são aquáticos, assim como os táxis aquáticos para os apressados, os caminhões de entrega, de lixo e de bombeiros – todos aquáticos a deslizar nos canais entre prédios que não mudaram muito pelo menos nos últimos 200 anos. O historiador inglês John Julius Norwich era conhecido por sua atuação na televisão britânica. Escreveu nos anos 1970 este longo hino em prosa de amor à cidade. Veneza é única.

Essa originalidade leva a uma multiplicidade de facetas da Urbe, e entre todas o autor escolheu a que provavelmente tem menos interesse para o turista encantado que compra esse volume. Trata-se de uma história política e até certo ponto militar da Sereníssima República de Veneza. O leitor interessado nas maravilhas de Tintoretto e Bellini recebe páginas a falar de hoje obscuros Doges ou de guerras entre cidades italianas na Renascença tão confusas que é de se perguntar se seus protagonistas mesmo as entendiam. Boa parte do livro se passa longe da cidade pois descreve guerras em suas colônias, como Chipre e Creta.

Aspectos como a base econômica disso não são praticamente tratados. Particularmente certos aspectos pouco nobres do comércio veneziano, como o tráfico de escravos, principalmente da região dos Bálcãs. A cidade em si é pouco enfatizada. A cidade – sua expansão, arquiteturas,  lógica urbana, escolas de arte, estrangeiros ilustres que por lá passaram, além de costumes como o carnaval, que se expandiu até o Brasil.

Ainda assim se trata de uma boa introdução a Veneza. Quanto à licitação, nenhum dos ilustres concorrentes a venceu, nem mesmo Michelângelo. Quem ganhou o contrato foi um certo e corretamente nomeado Antônio da Ponte. A Ponte é a do Rialto, um dos cartões-postais da cidade, que multidões cruzam hoje sem que desabe – o que mostra que o desconhecido vencedor da licitação não era tão ruim assim, afinal.


domingo, 6 de fevereiro de 2022

Os Habsburgos, de Martyn Rady

 

Mil Anos de Poder

Paulo Avelino

RADY, Martyn. Os Habsburgos: ascensão e queda de uma potência global. Lisboa, Portugal: Círculo de Leitores, 2021. 532p. Tradução Diogo Marques.

 

Maria Teresa tinha um problema, aliás vários. Era Rainha da Hungria e da Boêmia, Arquiduquesa da Áustria e de quebra Imperatriz do Sacro Império Romano-Germânico, mas mesmo os grandes têm problemas. Um deles era o persistente, diligente e chato Rei da Prússia, Frederico II O Grande, que passou metade da vida a querer tomar as possessões da vizinha, por política ou guerra. O outro era como manter o seu sobrenome. Era uma Habsburgo, casou-se com um certo Francisco Estêvão, Duque de Lorena, alguém com muito menor pedigree e capital, político e financeiro. Ainda assim, por ser homem, ele é que normalmente deveria passar seu sobrenome para ela. A solução foi simples: ele compôs o sobrenome com o da esposa. Passou a se chamar Francisco Estêvão de Habsburgo-Lorena.

Décadas depois a bisneta de Maria Teresa casou-se com um príncipe de Portugal, que no momento morava em um certo Brasil. E foi anunciada como Maria Leopoldina de Habsburgo-Lorena, esposa de Pedro I.

A poderosa família austríaca dos Habsburgos tem a ver com o Brasil, assim como tem a ver com quase tudo na face do planeta, desde as Filipinas até os países hispanos nossos vizinhos, a Bélgica, Hungria, Itália, Holanda e muitos outros países. Este recente livro do professor inglês e conhecedor da cultura húngara Martyn Rady traça um panorama enciclopédico da trajetória da família, desde quando por volta do ano 1000 eram pequenos senhores de terra na região entre as atuais Suíça, Alemanha e Áustria, até 1918, quando o último deles perdeu o poder, defenestrado após a derrota na Primeira Guerra Mundial.

Há histórias ótimas, como a da origem do sobrenome da primeira Imperatriz do Brasil. Também a da vampiromania que assolou a Europa em meados do século XVIII, com o respeitável testemunho de Voltaire, que em afirmou que em Paris nada se falava tanto quanto de vampiros – como eram caçados, seus corações arrancados e seus corpos queimados. Ou com a relação de Mozart com a cultura musical da época do Imperador José II – que não era um parvo como o retratou o filme Amadeus, mas um reformador tanto ambicioso quanto implacável.

Ambição aliás nunca falou nos Habsburgos, nobres que nasciam com dinheiro e terras e sempre pareciam querer mais. Destacam-se algumas personalidades, como o inescrupuloso Rodolfo I, o pioneiro da família a ocupar um trono real. Ou Carlos V, a quem uma sucessão de casamentos espertos e oportunos falecimentos de parentes concedeu um Império que se estendia por todo o globo. E familiares por afinidade, como a belíssima Duquesa Elizabeth da Baviera, a Sissi dos filmes e atração-mor do turismo hoje em Viena. Fechando com o piedoso Carlos I, beatificado pela Igreja, cuja fé foi insuficiente para manter o Império.

O livro de Martyn Rady serve tanto como uma visão enciclopédica da história europeia dos últimos mil anos como uma leitura de diletantismo a alimentar boas conversas com anedotas históricas.

 

 


sábado, 25 de abril de 2020

Rondon - uma biografia, de Larry Rohter


O Marechal entre dois mundos

Paulo Avelino

ROHTER, Larry. Rondon – uma biografia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019. Tradução: Cássio de Arantes Leite. 565p.

Não sabiam bem onde estavam. Apenas que era o estado de Mato Grosso, ou talvez já Amazonas, e que estavam enfiados na selva havia 36 dias. Só tinham avançado 150 quilômetros naquele rio. Também não sabiam qual era o rio. À falta de nome chamaram-no Rio da Dúvida –nome adequado para um rio do qual se desconhecia quase tudo. Sabiam apenas que em suas frágeis canoas lutavam diariamente contra corredeiras, que já tinham comido metade das rações, que entre os membros da expedição já ocorrera um assassinato, e que um dos dois líderes delirava de malária e pedia para ser abandonado. A morte de qualquer ser humano é uma tragédia, mas a morte daquele homem seria além disso um incidente diplomático. Aquela expedição tinha nas suas mãos a vida de um ex-presidente dos Estados Unidos.

Larry Rohter morou por muito tempo no Brasil como correspondente de jornais dos EUA. Escolheu como tema uma figura mais conhecida de alguns brasileiros por ser o nome de um velho projeto do Regime Militar, que levava estudantes a trabalhar no interior, o Projeto Rondon, reeditado anos atrás. Também poucos lembram que o nome do estado de Rondônia é homenagem a ele.

Cândido Mariano da Silva Rondon adotou esse sobrenome como seu – o Rondon é de ascendência indígena. No seu nome já veio a contradição na qual se equilibrou toda a sua vida – entre a civilização dos brancos e a dos nativos, sempre a tentar integrar os mais fracos na sociedade dos mais fortes de forma a que sofressem o mínimo possível com isso.

Havia poucas oportunidades para um garoto mato-grossense nascido em 1865 e uma das poucas era o Exército. Aluno brilhante da Escola Militar, o jovem Cândido teve uma participação menor na Proclamação da República. Na Escola conheceu também a Religião Positivista, a qual seguiria por toda a vida. Sua carreira estava destinada a ser tranquila e estável quando poucos anos depois o chamaram para estabelecer linhas telegráficas cruzando florestas que o homem branco não havia cruzado. Voltou então às selvas. E descobriu que eram cheias de pessoas a quem os brancos conheciam pelo nome genérico de índios. Nascia então a sua luta de toda a vida.

O popularíssimo ex-Presidente estadunidense Theodore Roosevelt queria esquadrinhar a selva. O governo brasileiro pressentiu o perigo e chamou o já experimentado explorador Rondon para dividir a liderança do grupo – e para salvar o visitante, se necessário.

Verdadeiro pesadelo verde, oportunidades de salvamento não faltaram. Na expedição Roosevelt-Rondon sobraram fome, crime, cachoeiras, doenças. Depois de muito sacrifício os brasileiros, Rondon à frente, conseguiram fazer com que Roosevelt saísse da floresta vivo, uma proeza de não pequena dificuldade. O rio da Dúvida como homenagem se tornou rio Roosevelt.

O fim do livro trata do que ficou do Marechal Rondon. Muitas das selvas que ele esquadrinhou não mais existem. No entanto a luta pelos direitos dos povos indígenas, os quais ele tanto promoveu, continua atual e mantém a importância do seu legado.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Uma Noite em Lisboa, de Erich Maria Remarque


Tempos de Medo

Paulo Avelino

REMARQUE, Erich Maria. Uma noite em Lisboa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1974. 242p. Tradução de Bélchior Cornélio da Silva.

Lisboa começo dos anos 40 e dois estranhos contemplavam navios no porto. Tempos de medo: com a Europa em guerra, Portugal é um dos poucos países neutros. E para lá confluíam pessoas de todo o continente, restos de humanidade que o crime da guerra criou: gente empobrecida, perseguidos por motivos políticos, temerosos de genocídios e até alguns espiões. Vinham psicologicamente estropiados de terror e de uma maratona de obstáculos em outros países: exigências de passaportes, vistos, atestados, certidões de permanência e de bom comportamento, uma pletora de controles que visavam a convencê-los de que o humano não era nada e que frequentemente convencia. Lisboa era ponta e trampolim: de lá muitos queriam cruzar o Atlântico, geralmente para os Estados Unidos. Mas faltavam passaportes, vistos e vagas nos navios. Poucos conseguiam.

Os estranhos contemplavam os navios que os salvariam, se lá pudessem entrar. O primeiro ouviu o outro chamá-lo. Pulou de medo, pois podia ser polícia secreta, e fica claro logo nas primeiras páginas o tom do romance. A perseguição fizera daquelas pessoas uns perfeitos paranoicos. Acostumadas a revistas e interrogatórios de guardas aduaneiros, policiais ferroviários, agentes à paisana, para eles todo desconhecido era um perigo em potencial. O segundo homem disse que se chamava Schwarz, que tinha duas passagens em um navio parta Nova Iorque, que queria dá-las para o primeiro, e que em troca apenas queria que o primeiro ouvisse a sua história.

Erich Maria Remarque escreveu o primeiro best seller da era moderna, Nada de Novo na Frente Ocidental (Im Westen nichts neues) e ainda é por essa obra conhecido. Não sem certa injustiça: o autor alemão, agora profissional dos livros e morando na Suíça, escreveu uma série de livros, geralmente com guerras como pano de fundo, mas tendo como tema real o horror humano dentro dos conflitos. Escreveu Uma Noite em Lisboa no começo dos anos 60.

Schwarz contou sua história ao outro durante aquela noite em Lisboa, em lugares que se podem reconhecer vagamente como cafés e prostíbulos na Alfama, sempre saindo de um para outro quando fechava ou quando desconfiavam ser observados por alguém que podia ser polícia à paisana. Não se chama na verdade Schwarz – esse é o nome no passaporte de outra pessoa, que ele utiliza. É perseguido político pelo Nazismo, sem que se saiba maiores detalhes sobre suas convicções. Helena, sua mulher, vinha de uma família de nazistas mas os detestava. Juntos empreendem fuga rocambolesca por vários países da Europa, enganando guardas, dormindo em lugares públicos, dando nomes falsos, e passando longo tempo em igrejas e museus (pois eles têm pouca vigilância). A narrativa quase sufoca, é nervosa de tantas peripécias. Simpatiza-se facilmente com o casal, sua fragilidade e ternura.

Trata-se de leitura infelizmente atual. Infelizmente pois há quem simpatize com nazismos e fascismos. Esse livro dá face humana às suas vítimas – nós.


terça-feira, 17 de setembro de 2019

Capitalismo e Colapso Ambiental, de Luiz Marques


Antídoto contra o perigo

Paulo Avelino

Marques, Luiz. Capitalismo e Colapso Ambiental. 3ª ed. revista. Campinas/SP: editora da Unicamp, 2018. 735p.

Quando o perigo vem, o animal foge. Mas quando aquele o surpreende, o bicho se paralisa na esperança de que o mal suma. Esse é o autoengano. Há também a denegação: saber que as coisas existem mas pensar que não são tão ruins assim.

Esse ensaio do professor Luiz Marques pode ser lido como um antídoto contra essas duas atitudes. Trata-se de aposta ousada: afinal é vasta e crescente a literatura sobre os problemas ambientais, particularmente sobre o aquecimento global. E seu autor não é o climatologista ou biólogo que se poderia esperar, mas um historiador de arte renascentista italiana.

Com tudo isso Luiz Marques explorou competentemente o assunto. Realizou pesquisa abrangente em assunto tão amplo e seu livro apresenta atração adicional para o leitor de 2019, que é a de ter sido recentemente atualizado. Livros sobre a crise ecológica caem rapidamente na obsolescência.

A primeira parte traça um panorama enciclopédico do estado do ambiente hoje e se denomina “Convergência das crises ambientais”, pois se trata exatamente disso. O problema não é só a emissão de gases de efeito-estufa na atmosfera, causando o chamado aquecimento global. A diminuição das florestas, o declínio dos recursos hídricos, o depósito de lixo nos oceanos, o colapso das biodiversidades aquática e terrestre, tudo compõe um mosaico que aponta para um Antropoceno e uma hipobiosfera, ou seja, um planeta moldado pela presença humana e com menor riqueza biológica.

Surpreende a recorrência de problemas que normalmente se supõem superados ou ao menos equacionados. O recente aumento do uso do carvão como combustível, quando se sabe que é um dos principais causadores da mudança climática. Também a revisão das previsões anteriormente otimistas quanto ao decréscimo da taxa de aumento demográfico, que faz com que o momento do zero crescimento seja empurrado cada vez mais para o futuro. E o aumento da taxa de destruição da floresta amazônica, já perceptível quando o livro foi escrito.

A segunda parte procura dar um sentido e uma saída a toda essa miríade de problemas convergentes. Para o autor, a crise atual parte de três ilusões concêntricas: primeiro, a ilusão de um capitalismo sustentável – qualquer tipo de crescimento não é mais possível; segundo, a noção de que quanto mais excedente, mais segurança, compreensível em uma espécie que passou privações tanto tempo, mas que se revelou falsa; e finalmente a ilusão antropocêntrica, de caráter filosófico, que crê ser o Humano o pináculo dos seres, com todos os outros inferiores a ele, e podendo se servir deles de acordo com as conveniências humanas.

Resta a saída. O autor dá apenas pistas. A lógica de acumulação não pode mais ser mantida – não se quisermos preservar o planeta o mais habitável possível. E não faz diferença se a lógica acumulativa se encontra em empresas privadas ou em economia socialista. Para tanto é necessária uma redistribuição de poder. Caminhos difíceis, e talvez inevitáveis.

segunda-feira, 18 de março de 2019

A Terra Inabitável, de David Wallace-Wells


Tragédias à porta

Paulo Avelino

WALLACE-WELLS, David. The uninhabitable Earth: life after warming. New York: Tim Duggan Books, 2019. 310p.

Primeiro o calor atmosférico, destruindo vidas em suas ondas; depois, a fome, com dezenas de milhões de migrantes a bater às portas de países ricos que não querem recebê-los; ao mesmo tempo as enchentes, com cidades costeiras a serem corroídas pela maré crescente; seguidos dos incêndios e deslizamentos e continua por aí. Pragas bíblicas em esteroides, as calamidades decorrentes do aquecimento global tornam quase ridícula a escala dos problemas do velho Egito do tempo dos profetas.

Nisso consiste a mensagem do livro de estreia do jornalista nova-iorquino David Wallace-Wells, editor de periódicos culturais. Não sendo especialista, consultou a bibliografia e entrevistou profissionais e desse trabalho decorreu esse livro que não se trata de um documento sobre a ciência do aquecimento global, mas de um apanhado das hipóteses mais prováveis do que ocorrerá com nosso mundo nas décadas a seguir.

E o quadro, em geral, não é belo. Após uma parte introdutória na qual sintetiza os problemas, segue-se uma série de capítulos, cada um dedicado ao que podemos rotular de uma desgraça. Os desastres assim chamados naturais não podem mais ser assim considerados, haverá falta de água potável, o ar já está sujo e se tornará mais ainda, ondas de novas doenças desconhecidas e de velhas doenças reforçadas atormentarão os humanos, a economia sofrerá com uma produção cada vez menor e como cereja do bolo ainda teremos guerras por questões de clima.

Um velho aforismo da arte de escrever ficção diz que não se pode escrever muitas desgraças seguidas, pois o leitor tende a se desengajar. Por isso os filmes de terror, quando exagerados, terminam por fazer parte da plateia rir de tanta tragédia. Este é um dos efeitos da leitura desse livro. O aquecimento global atinge os vitais interesses humanos de maneira tão destruidora e diversificada, segundo o autor, que o leitor quase que naturaliza as desgraças, e cada página virada o faz não só esperar, como (quase) querer mais.

Há, no entanto, o pior. Segundo o livro, a maior parte das pessoas pensa no aquecimento global como um evento lá pelo final do século, um futuro enevoado, a ser visto no máximo pelos bebezinhos de hoje quando chegarem uma sólida terceira idade. Não é o caso. Os efeitos, ou seja, as marés altas, os incêndios e as vagas de migrantes a causar instabilidade política estarão entre nós em questão de décadas, talvez uma década, e alguns de seus efeitos já se fazem sentir. Isso muda a perspectiva do futuro de nossas próprias vidas.

O autor não consegue explicar bem uma questão – a de por que, em meio a tanta miséria, ele mesmo teve uma filha recentemente. Titubeia, fala de luta, de estar fascinando pelos problemas que a filha vai ver,  na parte talvez menos convincente da obra.

Pode-se criticar a falta de interesse na América Latina e no Brasil em particular, excetuando algumas menções à floresta amazônica. No geral é livro assutador, o que, da perspectiva do jornalista, talvez seja um elogio.


segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Contra as Eleições, de David van Reybrouck


Eleições como inimigas da democracia

Paulo Avelino

REYBROUCK, David van. Contra as Eleições. Belo Horizonte: Âyine, 2017. Tradução de Flávio Quintale. 286p.

Há algo estranho com a democracia: todos parecem desejá-la, mas ninguém acredita mais nela – esta é literalmente a primeira frase do livro. Seguem-se estatísticas a demonstrar que em todo o mundo a democracia desfruta de alto prestígio. Trata-se de novidade histórica: no tempo da Segunda Guerra a democracia era desprezada, com poucas delas a funcionar no mundo.

Essa popularidade contrasta com a percentagem de pessoas que diz não dar importância a parlamentos, com o absenteísmo nos pleitos, e com os números cada vez menores de filiação a partidos políticos. Para essa contraditória porém real crise este pequeno ensaio pretende sugerir uma resposta.

O belga David van Reybrouck não é o circunspecto especialista que se poderia esperar. Já escreveu antropologia, história da África e peças de teatro. Nesse trabalho enfrenta a questão do sistema político de hoje.

E não o faz de maneira de maneira a apenas narrar, mas visa também a oferecer soluções. Depois de constatar a crise, analisa os diagnósticos correntes. A culpa seria dos políticos, da tecnocracia, da própria representação. Critica todas essas análises, e afirma que podem originar remédios inefetivos ou piores que a doença, caso da eleição de líderes demagógicos que se elegem com meia dúzia de frases feitas com apelo emocional, ou pelo assembleísmo que paralisa as decisões. A democracia, segundo ele, precisa conciliar duas necessidades: a eficiência e a legitimidade.

Propõe outro diagnóstico: a culpa seria da representação eleita, e a palavra-chave é “eleita”. Em afirmação ousada, diz que eleições fazem mal à democracia. É plenamente consciente do impacto do que fala, em um mundo em que democracia e eleições se tornaram praticamente sinônimos.

Para desfazer essa ideia, o autor esmiúça as origens gregas da ideia democrática e sua evolução em cidades-estados na Idade Média e Renascimento. Estabelece que, em tais exemplos históricos, a escolha de governantes e legisladores se fazia fundamentalmente por sorteio, sendo eleições um aspecto secundário no sistema político.

Em seguida investiga as origens do sistema eleitoral atual, nos séculos XVIII e XIX. Para talvez surpresa de muitos, afirma que as eleições foram estabelecidas não para fazer com que o próprio se governasse, mas para criar uma camada diferenciada, que governaria.

Para os males das eleições sugere um sistema de câmaras múltiplas, com  rigorosa divisão de poderes, cujos membros seriam escolhidos por sorteio, com voluntariado em alguns poucos casos. Os sorteados contariam com assessoria técnica no seu trabalho de elaborar as leis.

Pode-se concordar ou não com as ideias de van Reybrock, e especialmente com suas sugestões. Mas dificilmente se pode contestar a tempestividade de seu ensaio. A eleição de líderes de pensamento simplista, com muita retórica e poucas soluções concretas, além do apelo ao emocionalismo, tornam urgente a reforma do modelo democrático atual, sob pena de sua destruição.

E o que vier depois pode ser muito pior.