Uma história da Impureza
LIRA NETO. Uma História do samba: volume 1, as Origens. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017. 342p.
Paulo Avelino
Era uma vez um gênero musical que
nasceu de um só lugar, uma só raça, e uma só classe social, as três
desfavorecidas pelo sistema dominante. Cresceu puro, absolutamente livre de
quaisquer influências externas. Era odiado pelos setores dominantes da
sociedade, que só se lembravam dele para destruí-lo. Representava a revolta dos
oprimidos contra a sanha dos opressores. Impôs-se por sua qualidade. E então os
dominantes quiseram cooptá-lo, enchendo-o de elementos estranhos que ameaçavam
sua pureza inicial.
Não sei qual é o ritmo musical
cuja história contei no parágrafo acima. A história do samba é que não é.
O veterano biógrafo Lira Neto arriscou-se
neste novo projeto a sair de seu caminho conhecido para escrever uma história
de um modo de fazer música. O samba identifica-se com o Brasil, e logo no início
o livro deixa claro que tal identificação longe está de ser inocente.
Aliás trata-se de história sem
inocentes. A pesquisa do autor mostra que desde o início os principais sambistas
procuraram a proteção e a concordância do setor mais rico da sociedade. Uma
cena sintetiza isso. Pinheiro Machado representava a elite no seu máximo: próspero,
poderoso, fazedor de presidentes. João da Baiana era um dos primeiros sambistas.
Pinheiro protegia e deu um pandeiro de presente, com dedicatória, a João da Baiana.
O Samba e o Poder juntos.
Esse dueto político-musical
tornou-se explícito no Estado Novo – mais tarde, porém descrito na cena inicial
do livro. O talentoso e chapa-branca maestro Villa-Lobos procurou sambistas
para resgatar velhas tradições perdidas do nosso povo. Resgatar e reformar, diz
o livro. O compositor erudito dirigia um projeto de busca e construção de uma
verdadeira identidade nacional, sem influências externas. Nesse projeto entrou
o samba.
Os Oito Batutas excursionaram
pela França logo no início do gênero. Eram realmente batutas da música –
Pixinguinha era um deles. Foram um dos primeiros conjuntos de samba. Fizeram
algum sucesso, mas, mais que isso, descobriram o jazz. O gênero estadunidense
mudou suas roupas, seus instrumentos, até sua postura. O jazz fez Pixinguinha
tocar o saxofone que se tornaria sua marca. Nem pureza social, nem pureza musical.
O samba já nasceu mistura.
Lira Neto escreve biografias. Isso
se transpõe direto para esse primeiro livro fora do gênero. O forte são as
vidas dos protagonistas, mais que o condicionamento social ou evolução musicológica,
embora essas compareçam em pequena escala. Esse volume dos primórdios pode ter
o mérito de levar ao público não especializado uma série de nomes importantes
porém hoje pouco falados ou esquecidos, como Hilário Jovino, Sinhô, e Donga,
além de outros que são lugar-comum para as pessoas que saem um pouco da mídia
hegemônica, como Francisco Alves, Cartola e Noel Rosa.
Uma História do Samba (vol. 1) entretém. Traz informações curiosas.
E embora não seja seu propósito, mostra que, no samba, a beleza musical obviamente
existe. A pureza, nunca.
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