terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O Terceiro Combatente, de Marcel Junod

Lembranças da Cruz Vermelha

JUNOD, Marcel. Le Troisième Combattant. Genebra: Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 1989. 371p.

Suez abre suas eclusas. É a guerra.

Não a menos dramática passagem de uma obra na qual momentos dramáticos não faltam, esta frase exemplifica a sóbria tensão de um livro-testemunho. Começa com um telefonema para um rapaz no final de 1935. Um amigo lhe fazia uma oferta de mudar de emprego: deixaria o seu atual, um confortável posto de chefe de departamento cirúrgico, e partiria para uma guerra.

Os fascistas italianos tinham acabado de invadir a Etiópia. E a oferta era para ele viajar ao país invadido como delegado da Cruz Vermelha, para fiscalizar o cumprimento das convenções internacionais sobre tratamento de feridos e prisioneiros. Não pertenceria portanto a nenhum dos dois lados de toda guerra. Seria o Terceiro Combatente.

O jovem suíço Dr. Marcel Junod aceitou. E pelas próximas centenas de páginas vemos um relato de testemunha ocular de campos de batalha e de prisioneiros, desde Adis Abeba até Hiroshima.

O livro transmite a delicadíssima posição de um fiscal da Cruz Vermelha. Homem sem armas, transita entre homens muito bem armados, oficiais de exércitos, pedindo para que eles tenham exatamente o que são treinados para não ter – empatia pelo sofrimento humano, especialmente do inimigo.

Para poder circular por todos os lados em conflito o delegado deve adotar uma neutralidade quase exasperante. No entanto pode-se perceber a indignação do autor diante da injustiça. Logo no começo do livro ele observa que as tropas italianas que iriam matar etíopes passavam pelo canal de Suez, então propriedade britânica. Se os ingleses fechassem o canal, não haveria guerra.

Mas os ingleses não fecharam. Preferiram cobrar uma taxa caríssima por mercadoria transportada, em ouro, o que levou os fascistas a fazerem uma campanha por doação de joias de família, com grande apoio popular. Os súditos da Rainha ganharam seu dinheiro e os fascistas a sua guerra. São os deslizes dos senhores britânicos nas suas relações com o totalitarismo fascista, hoje esquecidos.

Um ponto alto acontece quando o autor procurou salvar prisioneiros de guerra ameaçados de fuzilamento por Hitler. Correu por estradas pequenas repetindo-se os nomes de alguns dos homens cujas vidas terminou por poupar.

Este livro publicado inicialmente em 1957 permite entrever os fatores que possibilitaram a permanência e o sucesso desta organização caritativa internacional. O primeiro deles talvez seja o seu caráter tentacular: existe a Cruz Vermelha de cada país. Congregam-se no Comitê Internacional da Cruz Vermelha, com sede em Genebra, na Suíça. Foi deste que o Dr. Junod foi empregado.

Outro aspecto é o de sua estrita neutralidade e atuação com concordância das partes beligerantes. No decorrer da leitura é difícil não simpatizar com aquele médico que, com voz suave, dizia na cara de certos senhores que eles não estão cumprindo com as convenções assinadas. Dito de outra forma, que eram criminosos.

Trata-se de uma boa introdução ao conhecimento desta organização presente em todo o mundo, a Cruz Vermelha.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Eva Perón, a biografia, de Alicia Dujovne Ortiz

Eva, a primeira mulher do Estado

Eva Perón, la biografía, de Alícia Dujovne Ortiz
ORTIZ, Alicia Dujovne. Eva Perón, la biografia. Buenos Aires: Suma de Letras Argentina, 2002. 510p.

Eva Duarte nasceu em 1919 em uma Argentina que, como ela, regurgitava de contradições. Pobre em um país de alta renda per capita, sem muita comida em uma sociedade que transbordava trigo e carne, discriminada em um Estado nominalmente democrático: escarneciam dela porque seus pais nunca se tinham casado. Viveria pouco mais de três décadas: curto tempo em que ela ajudaria a transformar a nação.

A jornalista argentina radicada na França Alícia Dujovne Ortiz procura equilibrar a narrativa de Eva mulher com a política, e quase sempre o consegue. Eva Duarte vem a Buenos Aires nos anos 30 em busca de sucesso. Capital que vivia a década infame, de regressão econômica e governos pouco efetivos, ao final dos quais algumas patentes do exército fãs do fascismo se uniram para mudar o estado de coisas, talvez pela força. Enquanto isso Eva canta e representa no rádio com sua voz pouco mais que medíocre.

Sua vida e a Argentina mudam quando o Grupo de Oficiais Unidos derruba o governo em 1943, e um coronel viúvo e boxeador chamado Juan Domingo Perón recebe o recebe o então pouco importante Ministério do Trabalho. Um evento de caridade une o militar e a atriz de segunda.

Eva, já então Perón, aos poucos percebe a força da máquina sindical. A Argentina se transformara: uma multidão vinda das províncias se acumulava na capital, onde prosperava uma indústria protegida pelas crises e guerras europeias. Mas não só Eva. Os oficiais do exército, assustados com seu Ministro, derrubam-no e o prendem. Pressionados pelos sindicatos, têm de soltá-lo. Ele fez o seu primeiro discurso importante e fundou o movimento que ainda hoje prevalece no segundo maior país do continente: o Peronismo.

Juan já eleito presidente, Eva se faz primeira-dama. Diferente das predecessoras, mistura-se com o povo. Atende os pobres, fala com eles, dá-lhes bolas de futebol, remédios contra urticária e vestidos. Em pouco não é mais Eva Perón: tornara-se Evita, a mãe dos descamisados, cuja vontade de poder só não era maior que a veneração por seu marido.

O livro descreve um Estado em desenvolvimento e mais do que isso, a criação de uma forma de ser Estado. O Peronismo representa uma forma de poder pelo contato direto entre o grande líder e os governados. Desconfia da mediação de sindicatos e partidos, mais manipulados pelo líder que propriamente respeitados. Evita representa plenamente esta tendência: seu contato é maternal, face-a-face. Claro que cobra um preço: a obra revela negócios bem pouco honrosos, inclusive com proteção de foragidos nazistas. Esse lado negativo foi esquecido: a morte prematura em 1952 congelou o sorriso de Evita no imaginário do povo.

Acusa-se o Papa Francisco de peronismo. Tem algum sentido: certo desvio da burocracia vaticana e os gestos diretos para a massa de fiéis lembram o movimento argentino. Se assim for, o peronismo de certa forma atingiu o mundo. Evita, a menina pobre tornada rica e protetora dos que permaneceram pobres, ajudou a fazer do peronismo aquilo que ele é.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A Oeste Nada de Novo, de Erich Maria Remarque

Os Estados fazem a guerra

REMARQUE, Erich Maria. A Oeste nada de novo. Lisboa: Livros de Bolso Europa-América, s/d. 204p.

Aperto a tecla pause desta lista de resenhas de ensaios e incluo um romance. Para ser mais preciso, o romance de certo Paul Baumer – dezoito anos, um esboço de peça teatral (“Saul”) na gaveta, alguns poemas, o sonho de ser escritor, uma irmã triste e uma mãe com cancro. E como sempre se passa em romances, aconteceu algo – Estados decidiram resolver suas diferenças na marra – e ele pagou a conta.

Erich Maria Remarque tem muito de seu personagem Paul: dezoito anos em 1916, convocaram-no ao sorvedouro de carne chamado Primeira Guerra Mundial. A partir daí as lendas prevalecem: não se sabe quantas vezes foi ferido, nem quanto tempo permaneceu realmente na lama das trincheiras. Sabe-se que foi e viu a guerra – sem poemas nem baladas. Depois disso tentou meia dúzia de profissões. Até que escreveu um livro para exorcizar seus fantasmas – e o resultado foi o primeiro best-seller da era moderna, com um milhão de exemplares vendidos.

Im Westen nichts Neues trata de um grupo de estudantes alemães embriagados de propaganda patriótica que se engaja como voluntários na guerra. O primeiro cabo imbecil e o primeiro bombardeio dilaceram seu idealismo.

Neste livro escasseiam as datas, nomes de batalhas e de planos, os quais fazem a estética dos livros de guerra – quando vista pelos generais, que pouco sofrem as consequências dela. Para o soldado comum resta uma pilha de momentos que não muita sequência formam entre si, como uma espécie de eterno tempo presente. Este é o caroço da narrativa: um ataque com gás, os abarracamentos, a visita aos feridos, um bombardeio que dura dias, uma licença, a volta, o hospital. O tempo parece não passar.

Livro de fantasmas, explicitamente se refere ao trauma dos jovens – pegos em uma cunha entre a autoridade já frouxa dos pais e a influência ainda fraca das mulheres. Com a vida partida, sentem-se descrentes – não revolucionários. O que pode servir como exemplo para uma sociedade com muitos jovens na marginalidade: não são eles os que fazem revoluções.

O Estado-nação aperfeiçoou seus instrumentos durante o século XIX. Ou suas garras, poder-se-ia dizer. No caso dos países desenvolvidos, isso desembocou na aliança de uma recém-criada indústria química e metalúrgica com cliques de estados-maiores e necessidades de expansão comercial. E o resultado foi o sacrifício de rapazes. Dos vinte colegas de Paul Baumer, só um não saiu morto, amputado ou interno no manicômio.

A Primeira Guerra aplicou golpe (merecidamente) duro em ideias como o progresso inevitável dos povos, a superioridade moral dos europeus e o desenvolvimento como fator garantidor da paz. Também na doutrina do Estado – na sua nobreza intrínseca e no dever sacrossanto de defendê-lo. Foram esses até então inatacáveis Estados que trucidaram os meninos do romance.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A Sagração da Primavera, de Modris Eksteins

As bases culturais do Armagedon

EKSTEINS, Modris. A Sagração da Primavera: a Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna . Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 480p.

Um balé estreia em certo teatro de Paris; um grupo de jovens corre em direção a pedaços de chumbo que voam - e são mortos. Em sua obra de estreia o professor de história letão-canadense Modris Eksteins procura interpretar a Primeira Guerra Mundial evitando as tradicionais perorações sobre batalhas e generais. Intentou o ângulo da História Cultural. No momento em que a Guerra completa cem anos de início, vale uma revisão do seu ponto de vista.

A época do conflito trouxe não só ela mas também a vanguarda cultural. Para o autor esses fatos não são só contemporâneos mas interligados. Como momento simbólico escolheu a Sagração da Primavera, balé que causou furor cerca de um ano antes da catástrofe. Obra vanguardista, buscava o escândalo - fugia das convenções de graciosidade do balé clássico e tratava de tema considerado até então pouco estético: o assassinato de uma jovem, sacrificada para que a primavera pudesse florescer. Para o autor a ligação é clara - o sacrifício de uma jovem - o sacrifício de milhões de jovens em ataques para ganhar metros na guerra.

Até então pouco estético. Eksteins afirma que o Mundo do Século XX preconizou a estetização da vida - inclusive do que em princípio causava repulsa, como a morte e os conflitos armados. Essa nova visão da vida - e do seu contrário - formou uma base de mentalidade imprescindível para o massacre aparentemente sem fim.

Estetizado como seu tema, o livro se divide em Atos. O primeiro se refere à mentalidade cultural e seu papel nos inícios do conflito. O ponto alto consiste na muito pesquisada descrição do que aconteceu na cidade de Berlim na última semana de julho e na primeira de agosto de 1914, um contexto que geralmente é ignorado pela torrente de livros que trata das declarações de guerra. Muitas obras descrevem à exaustão um ou outro telegrama do Kaiser Guilherme ou do Chanceler Bethmann-Hollweg. O que eles não informam é que pelas janelas esses homens podiam escutar urros da multidão e bandas de música marciais clamando por guerra. Isso o autor faz de forma segura.

Um homem solitário chega em seu avião - no Terceiro Ato o livro salta nove anos e quase literalmente aterrissa junto com Charles Lindbergh no aeroporto de Le Bourget em Paris em 1927. Esta parte trata das consequências da guerra - que para o autor ultrapassaram em muito o plano material. O aviador foi paparicado não só por ser um herói, mas principalmente por ser um herói solitário. O homem só, individualizado, quase desconectado. Esta, talvez, a maior herança do conflito.


Como todo tema muito explorado a Primeira Guerra Mundial deixa a sensação que de alguma forma o principal ainda está por se dizer. Pode-se, e talvez deva-se, discutir se a influência de fatores culturais não é superdimensionada pelo autor. Mas o livro estabelece um ponto de vista surpreendente e produz momentos deliciosos de leitura - estes, talvez o maior galardão de uma obra. 

terça-feira, 15 de julho de 2014

Canhões de Agosto, de Bárbara Tuchman

O Mês Interminável


Canhões de Agosto, de Bárbara Tuchman
         TUCHMAN, Bárbara. Canhões de Agosto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994. 510p.

A própria autora tem participação no livro – discretíssima. Refere-se a um interrogatório ao qual alguns embaixadores teriam submetido a filha do representante estadunidense no Império Otomano, Mr. Henry Mongenthau. Esta filha se encontrava com seus três filhos. Um deles era a que viria a escrever a obra.

Bárbara Morgenthau Tuchman escreveu este livro sobre o primeiro mês da Primeira Guerra Mundial. A ocasião era propícia: a guerra estava então prestes a celebrar cinquenta anos. Agora que se encontra na celebração do centenário, o mercado editorial do Primeiro Mundo inunda as prateleiras de obras sobre o assunto. A maior parte não muito elucidativa: nomes como Viviani, Sazonov, Berchtold, Bethman-Hollweg, Lloyd George, Moltke e Joffre se repetem com monótona insistência. E nem isto os salva de serem poeira de história.

O Clássico Os Canhões de Agosto ajudou a inaugurar os livros históricos agradáveis de ler, um gênero que hoje virtualmente expulsou os romances do imaginário público. Tem bem mais rigor que muitos de seus sucessores, é verdade. Cautelosa, a autora evita discorrer sobre as causas da guerra. Na primeira parte se refere aos Planos – o que dá o tom do resto da obra, que se prende rigorosamente ao factual. Evita o pântano das disputas ideológicas.

Escreve muito bem. Cada personagem é precedido de uma descrição de sua vida e hábitos, de forma que pensamos até vê-los. Não é pouco, considerando que a maior parte dos protagonistas é de cinzentos generais e de escorregadios diplomatas – e que quase nenhum primava pelo brilho. Se assim o fosse, não se teriam deixado levar quase passivamente por uma engrenagem que mataria milhões – mas não  a eles mesmos – engrenagem essa que ajudaram a criar.

Depois dos planos aborda os dois últimos dias de julho e cinco primeiros dias de agosto de 1914, durante a qual choveram ameaças e declarações de guerra. Trata-se da parte mais repisada deste drama, aquela em que mais aparecem os hoje obscuros personagens já referidos. A autora foi das primeiras a mergulhar neste mar de telegramas de Estado e notas sobre reuniões em chancelarias.

Depois do fracasso dos diplomatas, descreve as batalhas, talvez a parte mais interessante. Ao contrário da quase totalidade dos autores, Bárbara não se confina ao que ocorreu na fronteira entre França, Bélgica e Alemanha.  Revela cantos hoje pouco visitados do drama, como o bombardeio da Sérvia, a terrível batalha de Tannenberg e o incidente dos navios Goeben e Breslau – do qual a mãe da autora participou de forma menor.

O enredo converge para a chamada batalha do Marne – um rio próximo de Paris, afluente do Sena, perto do qual os soldados alemães tiveram de recuar. Estavam exaustos de virem a pé desde seu país. Segundo a autora, isso não determinou o resultado da guerra - mas determinou que não seria rápida.

Trata-se de um livro que já passou pelo teste do tempo e constitui uma agradável e rigorosa introdução para quem quer saber sobre o grande conflito.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Uma Linha na Areia, de James Barr

A difícil construção do Estado no Oriente Médio


BARR, James. A Line in the Sand: Britain, France and the struggle that shaped the Middle East. 6ª ed. London: Simon and Schuster, 2012. 454p.

Duas superpotências, uma fogueira de vaidades e a história [e tragédia] de cinco Estados-nação – isso sintetiza o novo livro do autor britânico especializado em Oriente Médio James Barr. O autor de Pondo Fogo no Deserto: T. E. Lawrence e a Guerra Secreta Britânica na Arábia 1916-1918 segue adiante e, após cobrir o período da Primeira Guerra Mundial, foca os acontecimentos entre 1918 e 1948.

Editores, jornalistas free-lancer, até historiadores amam inundar o mercado de matéria escrita sobre o Oriente Médio. A presença de Iraque, Israel e Egito nos noticiários garante um público interessado. Personagens como Winston Churchill e Thomas Edward Lawrence (o Lawrence da Arábia), e Charles de Gaulle, para não falar de Gamal Abdel Nasser e Lloyd George, trazem um toque de exotismo às narrativas. Para James Barr, os autores se concentram nas duas conflagrações mundiais, esquecendo que o que se passou entre elas importa. É o que se propõe a fazer neste livro.

Durante a Primeira Guerra Mundial a Grã-Bretanha governava um quarto do mundo. Atrás dela, mas não muito, a República francesa. Essas duas superpotências aliadas e inimigas lutavam contra outra potência, a Alemanha, coligada esta ao velho Império Otomano. As duas primeiras apoiavam os árabes, um povo que tivera seu tempo de glória um milênio antes, e agora os turcos os dominavam.

Isso para fins de propaganda. Secretamente França e Grã-Bretanha engendraram um acordo sobre a Arábia sem ter a delicadeza de ouvir quem morava lá. Passou à história pelo nome dos funcionários que o assinaram, Sykes-Picot. Dividiram o deserto ao meio por uma linha quase reta (a tal linha da qual fala o título), que pode ser vista até hoje como fronteira entre Síria, Iraque e Jordânia.

Esse acordo e a subsequente política de dois países, um querendo tomar mais território e influência que o outro durante três décadas moldaram aquela parte do globo. Dele saíram cinco Estados-nação: Israel, Síria, Iraque, Jordânia, e Líbano, com populações heterogêneas, pouca tradição de autogoverno, e com os complicadores do choque religioso e da presença dos interesses do petróleo. As potências realizaram uma política de apoiar (e às vezes armar) as minorias da região uma contra a outra, o que gerou dramas renitentes, como o choque entre o Estado judeu e os palestinos.

Como quase todos os livros de jornalismo histórico modernos a obra de Barr privilegia detalhes romanescos, como a personalidade fulgurante de certos protagonistas, em vez de fatores subjacentes, especialmente econômicos. Estes só são mencionados ocasionalmente, como quando revela que a economia da Síria era quase totalmente dominada pelos franceses, ou narra a construção de um oleoduto conduzindo o petróleo iraquiano para o Mediterrâneo, exatamente quando a Grã-Bretanha transformara sua esquadra de carvão para óleo.

A obra constitui leitura interessante para os aficionados no assunto e pode contribuir para esclarecer uma parte dos problemas e soluções de uma região importante do mundo.

terça-feira, 15 de abril de 2014

A Economia Argentina, de Aldo Ferrer

A Construção de uma Dependência


FERRER, Aldo. La Economía Argentina: desde sus orígenes hasta principios del siglo XXI. Com a colaboração de Marcelo Rougier. 4ª ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010. 484p.

No Princípio era a Expansão Comercial Europeia, o papel dinâmico das rotas mercantis. Depois veio a Primeira Ordem Mundial, um sistema de produção, distribuição e apropriação de riquezas que se espalhava por todo o mundo – com a Europa como centro. Mais terras e mais povos entraram nesse jogo, de forma voluntária ou não. Uma dessas, na ponta da América do Sul, ganhou futuramente o nome de Argentina – que sempre viveria entre a dependência de centros mais dinâmicos no exterior e a luta para sair de tal condição.

O economista argentino Aldo Ferrer tem história: junto com o brasileiro Chico de Oliveira, talvez seja o último representante do chamado pensamento cepalino, uma corrente de economistas latino-americanos que nos anos 40 e 50 decidiu que era a hora da América Latina virar seu eterno jogo – deixar de ser mera provedora de uns poucos produtos primários e partir para a autonomia e o progresso. Seus pioneiros congregavam-se na Cepal, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe da ONU, e seu líder foi o também argentino Raúl Prebisch, seguido de perto pelo brasileiro Celso Furtado. Que está presente logo na introdução do livro: o autor afirma que o enfoque que utiliza foi inspirado no que Celso Furtado utilizou na sua Formação Econômica do Brasil.

O autor começa explanando o surgimento do que denomina de economias regionais de subsistência dentro do território atualmente ocupado pela Argentina. O Império Colonial Espanhol tinha como centro as regiões produtoras de minério. As rotas comerciais dentro dele geraram uma frouxa especialização produtiva em regiões como Mendoza, Cuyo ou mesmo Buenos Aires.

O livro ganha em dinamismo quando explica a transformação desta sonolenta economia marginal em uma plenamente integrada na divisão internacional de produção – de uma maneira dependente dos centros europeus. Isso ocorreu quando a demanda de alguns produtos primários pela Europa se juntou a meios de transportes mais seguros e à existência de um excesso populacional na Europa – fatores que se conjugaram para propulsionar a ocupação das férteis terras de origem vulcânica da província de Buenos Aires e seu entorno para produzir lã, trigo e carne para corpos e bocas europeias.

Por algum tempo os resultados ultrapassaram expectativas: a Argentina ostentava alta renda per capita, prédios parisienses na capital e uma educação pública forte. No entanto a prosperidade tinha prazo fixo – as principais decisões – de investimento e demanda - estavam fora do controle do país.

Como de certa forma continuaram: o autor percorre a experiência industrializante peronista, os graves problemas econômicos das décadas de 1960 a 1980 e o desmonte do período de Menem sempre enfatizando as dificuldades de uma economia periférica, malgrado mais ou menos breves períodos de bonança.

A Argentina espelha o Brasil – e vice-versa. Conhecê-la é um pouco nos conhecer. É algo que nos fica desta obra.

sábado, 15 de março de 2014

Patrice Lumumba, Africa´s Lost Leader, de Leo Zeilig

Um homem a construir um Estado


ZEILIG, Leo. Patrice Lumumba: Africa´s Lost Leader. London: Haus Publishing. 2008. 182p.

Impressionam nele as ausências. Não possuía os atributos de outros líderes do Terceiro Mundo na mesma época: faltava-lhe a proeminência intelectual de Kwame N ´Krumah, as décadas de monasticismo clandestino de Ho Chi Minh ou a construção organizativa de Gamal Abdel Nasser. Malgrado isso, tornou-se o mais célebre líder da África, ao lado de Mandela.

O jornalista inglês Leo Zeilig traça um painel geral da vida de Isaie Tasumbu Tavosa, que depois adotaria o nome de Patrice Lumumba (1925-1961) e que sob esse nome liderou para a independência um país conhecido hoje como República Democrática do Congo.

A Bélgica colonizou a maior parte da bacia do grande rio Congo (também conhecido como Zaire). Fez nela também um dos maiores genocídios da história, oprimindo a população para obter borracha e marfim quase de graça. Isso ocorreu na virada dos séculos XIX a XX. Lumumba não viu isso. Também por muito tempo não foi informado disso: a Bélica tinha uma zelosa política de não permitir a educação na sua colônia, de forma que, quando da independência em 1960, o Congo possuía menos de trinta pessoas formadas, das quais apenas um advogado.

Diante de tão poucas oportunidades o jovem Lumumba compensou a falta de escolas lendo por conta própria, aperfeiçoou o francês com um curso por correspondência. E se tornou pequeno funcionário dos correios, o que, para a colônia, não era pouca coisa. O autor argumenta serem risíveis as acusações de comunismo: em 1958 não haveria um só livro de Marx em todo o país.

Impressiona sua falta de preparo teórico. E prático. Lumumba não escreveu pequenas bibliotecas de ensaios políticos, nem gastou anos em reuniões de comitês subversivos. Ao contrário, faltando cinco anos para a independência ainda escrevia artigos sobre a obra civilizadora dos belgas. Presidiu sua primeira associação mais ou menos na mesma época. E nem era exatamente uma organização política. Só se tornou político de tempo integral três anos antes de se tornar primeiro-ministro.

As bombas atômicas jogadas no Japão foram feitas com urânio do Congo vendido barato pelos belgas. Aos Estados Unidos interessava pouco que essa fonte parasse na mão da União Soviética, apesar da quase nenhuma afinidade de Lumumba com aquele regime.

Talvez por isso foram as províncias que continham minerais as que declararam movimentos separatistas com semanas da independência. As Nações Unidas pouco fizeram, os países africanos menos ainda. Apoiados pela Bélgica, os rivais de Lumumba o mataram e instauraram um regime de corrupção que atirou um país rico em minério e energia elétrica na pobreza.


A obra traça o retrato de um homem tentando surfar um vagalhão fora de seu controle - a transição da dominação europeia direta para uma independência comportada. O colonialismo tudo fez para inviabilizar um Estado unificado e apto a usar as riquezas nacionais em benefício de seu povo. Era o sonho de Patrice Lumumba. Continua a ser um sonho africano, e são muitos os que trabalham para que se torne real.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Celso Furtado Essencial, de Celso Furtado

Multifacetas de um pensador da América Latina


FURTADO, Celso. Celso Furtado Essencial. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras. 2013. 527p. (Organização e notas de Rosa Freire D´Aguiar).

Ter ou não acesso à criatividade, essa é a questão. A frase fecha o ensaio “Reflexões sobre a cultura brasileira” e sintetiza um dos eixos do pensamento de Celso Furtado (1920-1984) e desta seleção de algumas de suas obras, realizada por sua viúva Rosa Freire D´Aguiar. A obra do economista nordestino é multidimensional e este pequeno volume o atesta: desde a teoria e a história econômica até áreas menos esperáveis como ciência e criatividade, muito das ciências humanas foram objeto de suas preocupações.

A América Latina deve resolver seus problemas e carece de teoria para tanto e o teorizar enquanto se faz parece ser uma sina. O mesmo aconteceu com Celso: nunca um teórico nem um administrador puros, a primeira parte do volume elenca trechos autobiográficos, entre os quais destaque-se sua passagem pela Comissão Econômica para a América Latina – Cepal. Tal órgão representou talvez a primeira tentativa séria de pensar o continente a partir de dentro. Lembremos o líder de tal escola, o argentino Raúl Prebisch, cuja biografia já foi objeto de resenha neste blog.

Retratado pelos apologistas da Ditadura Militar como um marxista raivoso, Celso nunca foi isso – e o autor desta resenha pode atestá-lo pessoalmente. Em lançamento de livro em 1984, impressionou-me sua calma – que se pode confirmar em suas entrevistas na mídia. Em termos teóricos, o marxismo clássico não dirige seu pensamento. Celso acredita em sérias ligações entre a base material de uma sociedade e suas expressões política, administrativa e cultural. Mas não crê em uma determinação de todo o demais pelo econômico.

Coletânea multifacetada de um autor que também o é, alguns trechos (talvez não os menos interessantes) destacam o papel propulsor da cultura. Isso se dá entre países: em “Subdesenvolvimento e dependência” o autor descreve como as sociedades periféricas destinadas a produzir em função das economias cêntricas absorvem a cultura destas últimas, particularmente em uma classe privilegiada relativamente pequena, e isso gera pressões permanentes no balanço de pagamentos em função de uma propensão a consumir bens da cultura fonte. Também pode se dar entre regiões: o ensaio “Operação Nordeste” enfatiza como, enquanto a natureza do Nordeste é bem adaptada à carência de água, a estrutura econômica-social que para lá se transplantou não o é.

Ele mesmo disse que a questão é saber quais povos contribuirão para o enriquecimento do patrimônio cultural da Humanidade, e quais se resignarão a consumidores de bens culturais alheios. Aqueles que pensam o Brasil e a América Latina não podem perder Celso Furtado de vista. Não para repeti-lo, mas para utilizar sua abordagem multidisciplinar e que buscava sempre a origem dos problemas.